Ter uma pessoa próxima cujas visões opostas se aliam a uma amizade profunda e convicta pode ser uma influência maravilhosamente instrutiva. Pois enquanto formos obrigados … a ver o outro sempre como algo falso, mau, hostil, em vez de simplesmente o outro, não entraremos numa relação tranqüila e justa com o mundo em que todos devem ter lugar: parte e contraparte; eu e o sumamente diferente de mim. E, apenas sob o pressuposto e a admissão de tal mundo completo, poderemos dar um arranjo amplo, espaçoso e arejado ao nosso eu interior, com seus constrastes e contradições internos.
[…] De ser humano para ser humano é tudo tão difícil e não ensaiado, tão sem modelo e exemplo, que deveríamos, em cada relacionamento, viver com total atenção, criativos sempre que se existir algo novo e houver tarefas e questões e demandas.
[…] Parece-me que resulta em nada senão desordem quando o empenho geral (aliás, uma ilusão!) tem a pretensão de aliviar ou abolir de forma esquemática as dificuldades. Pode ser que isso reduza a liberdade da pessoa muito mais do que o sofrimento propriamente dito, que passa ao indivíduo que nele confia instruções indescritivelmente apropriadas e quase ternas para dele escapar – se não para o exterior, então para o interior. Querer melhorar a situação de alguém pressupõe uma certa compreensão de suas condições, como nem mesmo um poeta a possui a respeito de um personagem de sua própria invenção. Muito menos então a pessoa que pretende ajudar, tão infinitamente excluída e cuja distração se torna total com sua doação. Querer mudar, melhorar a situação de uma pessoa significa oferecer-lhe, no lugar das dificuldades em que ela tem prática e experiência, outras dificuldades que talvez a peguem ainda mais de surpresa.
[…] Como é significativo que certas pessoas tenham definido o humano como o geral, como o lugar em que todos se encontram e se reconhecem. É preciso aprender a perceber que é justo o humano que nos faz sozinhos.
Quanto mais humanos nos tornamos, tanto mais diferentes ficamos. É como se de repente os seres se multiplicassem por mil; um nome coletivo, que antes abarcava milhares, logo se tornará muito estreito para dez pessoas, e seremos obrigados a considerar cada indivíduo inteiro. Pense: quando um dia teremos seres humanos, em vez de povos, nações, famílias e sociedades; quando não será mais possível agrupar nem mesmo três pessoas num só nome! O mundo então não deverá se tornar maior?”
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Rainer Maria RILKE | em “Cartas do Poeta sobre a Vida”
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