O amor e a memória conspiram juntos. É por não nos conseguirmos lembrar de quem amamos que temos de estar sempre junto dela. A olhar para ela. Cada vez que a vejo sou apanhado de surpresa. Baque do costume. Já chateia. É sempre diferente, mais bonita, mais interessante do que eu pensava.

Por que é que eu não me consigo lembrar da cara dela? Já tentei. Já fiz tudo. Fiquei acordado a tentar aprendê-la de cor. Estudei-a. Sobrancelha por sobrancelha. Dez minutos para cada uma. Tomei apontamentos. Escrevi-a num caderno. Tirei-lhe fotografias. Pendurei-a na parede. Decorei o meu quarto (e os interiores do meu coração) com ela, mas mesmo assim não a consigo ver. No momento em que tiro os olhos dela, desaparece. Os meus olhos prendem-se a ela, mas os olhos dela não param dentro de mim. Isto assusta-me. Ela impressiona-me tanto. Mas não deixa impressão. Deixa um vazio. É isso que o amor faz. Troça de nós. Ou se calhar ela é como um bombardeamento que presencio e esqueço. Como um soldado cheio de medo, escondido na minha trincheira, varro-a da memória. E depois ela volta quando começo a sonhar.



Miguel Esteves Cardoso

As Minhas Aventuras na República Portuguesa


Arte: Florian Nicole (Neo)


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“Destruction of the Athenian Army in Sicily,” drawn by H. Vogel (19th century)


Um exército conquistador pilha por turnos, poupa os vencidos, reconstrói as cidades, cobra o tributo, restabelece a ordem. Faz seu o subjugado, e como seu o preserva. Desfeito o turbilhão, zelam as patrulhas pela aplicação da norma. Mas, quando passa uma horda, deixa na terra a marca da pura irracionalidade, o restabelecimento do caos original, que faz do engenho ameaça, do labor perversão, da beleza monturo. Assim as colunas quebradas, as termas conspurcadas, os cadáveres esventrados ao claror dos incêndios. Não corre entre eles um único homem capaz de bradar: poupem, que o que aqui está já nos pertence! A salteada demoníaca tudo faz raso, até que a detenham os primeiros ferros duma legião.

Nesta villa trucidaram animais e escravos que ficaram a inchar pelos campos; quebraram as colunas, arrancaram as telhas, desfeitearam os lares; rasparam as velhas pinturas dos interiores; serviram-se de móveis e estofos como lenha; as mesmas mós, de duríssima rocha, britaram. Desenraizaram as árvores, devastaram as vinhas, pisaram as flores. Todos os livros foram esfarrapados ou queimados. Até nesta inofensiva mesa de mármore apuseram as suas marcas bestiais. Porquê? Em nome de quê? Se tal eu soubesse, seria o mais sábio dos homens e poderia aconselhá-los com proveito. O porquê daquela ânsia dementada de destruir deve ser, de todos, o mistério mais bem guardado. Não quis a divindade revelar-mo, apenas que lhe sofresse as consequências.

[…] Poucos vestígios da razia são hoje aparentes. É difícil acreditar que estas casas foram reconstruídas, após terem sido em grande extensão arrasadas. Quando esta geração morrer, não ficará memória das alterações que em dias de desgraça ensanguentaram estas paragens. Restarão talvez anotações em livros, que ninguém lerá, até serem, eles próprios, destruídos, pela crueza do tempo e desatenção dos homens, na melhor das hipóteses.


Mário de Carvalho  |  Um deus passeando pela brisa da tarde

(Companhia das Letras, 1994, pp. 15-16)

Posted by: Jussara


Sob a máscara do esquecimento e do equívoco, invocando como justificação a ausência de más intenções, os homens expressam sentimentos e paixões cuja realidade seria bem melhor, tanto para eles próprios como para os outros, que confessassem a partir do momento em que não estão à altura de os dominar.

Sigmund Freud  |  “As Palavras de Freud”



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Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças a qual o que é por nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física” (…).

Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo dos órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento.

O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico.”

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Nietzsche (Genealogia da Moral, pág. 47-48)

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