Posted by: Jussara
Ilustração por / llustration by: Alexey Kurbatov (Russia)
DAS MULHERES
por Vilém Flusser
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Só se pode falar nas mulheres do ponto de vista masculino. Inclusive, quando se é mulher, bem entendido. Porque a nossa cultura não admite outro ponto de vista. É uma cultura masculina, e resultado de realização milenar de um projeto masculino, o ponto de vista feminino, se é que jamais conseguiu articular-se conscientemente, foi, há muito, completamente sufocado pela cultura. De maneira tal que quando as mulheres se querem libertar, visam necessariamente os direitos dos homens.
Como se deu isto? Este terrível empobrecimento pelo qual perdemos o ponto de vista feminino? Pergunta de difícil resposta, já que a perda deve ter acontecido no paleolítico, época imemorável. A única forma como podemos imaginar uma resposta é esta: em um momento remoto da história da humanidade, os homens violentaram as mulheres tão radicalmente, que estas perderam a noção da sua identidade. E, em conseqüência, os homens perderam a possibilidade de verem-se, a si próprios, de fora. O fato, embora triste, é por enquanto imutável. Nenhuma quantidade de sutiêns jogados fora por feministas pode mudá-lo.
Podemos, é claro, interpretar o fato, na tentativa de compreendê-lo. Assim, por exemplo, no paleolítico os homens eram caçadores de mamutes e renas, e as mulheres colecionadoras de ovos e raízes. A divisão do trabalho era conseqüência da diversidade anatômica de ambos. Os homens tinham, portanto, vida masculina, com ciência masculina (conhecimentos objetivos de renas) e ideologia masculina (adoração do Sol e das Estrelas que guiavam seus passos durante a caça na estepe). E as mulheres, vida feminina, com ciência feminina (conhecimentos objetivos das raízes) e ideologia feminina (adoração da Terra que fornece raízes).
Mais tarde, em revolução enorme, mas esquecida, os homens passaram a ser pastores. Pastor: colecionador de animais outrora caçados. As renas viraram cabras. Mas, mais importante ainda: o homem, embora de certa forma ainda caçador, virou também colecionador, como o foi a mulher outrora. Assimilou a ciência feminina. E a tendo assimilado, subjugou as mulheres. Simultaneamente, impôs sobre as mulheres sua própria ideologia. A adoração da Terra passou a ser menosprezada (inferiorizada e infernalizada) e a adoração do Céu oficializou-se. Eis como talvez surgiu o patriarcado. Inexorável.
A mulher vive doravante na ciência e na ideologia masculinas. Não pode ser mulher “para si”, não saberia como. Apenas pode ser, deste ponto em diante, mulher para o homem.
Mas o homem pode efeminar-se. Virar consumidor passivo (visão masculina da feminilidade). Fim do macho.
(Publicado originalmente na Folha de São Paulo em 18/02/1974)
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