Quando o americano David Foster Wallace se suicidou em setembro de 2008, com apenas 46 anos de idade, vários de seus textos se espalharam pela internet e mídia impressa em uma espécie de homenagem àquilo que o tornava um dos mais admirados escritores de sua geração. A revista brasileira Piauí não deixou de dar a sua contribuição, publicando o texto que reproduzo abaixo, tirado de um discurso de Wallace como paraninfo no Kenyon College, três anos antes.

Na época de sua morte, o principal crítico literário do The New York Times, Michiko Kakutani, que não costumava elogiar o trabalho de Wallace, afirmou que o escritor podia fazer praticamente qualquer coisa a que se propusesse: “Ele pode fazer o triste, o engraçado, o bobo, o comovente e o absurdo com a mesma facilidade; pode até mesmo fazê-los todos de uma só vez”. E assim o jornal escreveu, em seu obituário, que David Foster Wallace era “um escritor versátil, de energia aparentemente inesgotável”, com uma curiosidade quase maníaca pelo mundo físico e também pelo complexo universo dos sentimentos humanos. Uma descrição e tanto…

Wallace cresceu em uma ambiente acadêmico. Seu pai era professor de Filosofia na Universidade de Illinois e sua mãe ensinava retórica em uma faculdade comunitária local. Em uma de suas entrevistas, ele disse que se lembrava de seus pais pais lendo Ulisses em voz alta um para o outro antes de dormir, e também que seu pai lia Moby Dick para ele e a irmã mais nova quando os dois tinham apenas oito e seis anos. Em 1985, graduou-se tanto em Inglês como Filosofia, com a nota (GPA) mais alta de sua turma. Sua dissertação em filosofia nada tinha a ver com literatura; dizia respeito à semântica e modalidades físicas na batalha marítima em Aristóteles (?!?!), segundo o próprio Wallace. Seu trabalho e nota rederam uma oportunidade de estudar filosofia em Harvard, que ele recusou, preferindo uma bolsa de estudos em composição literária na Universidade do Arizona — e as outras duas opções para esse tipo de programa eram a Universidade de Iowa e a conceituada Johns Hopkins, veja bem!


Escrever ficção me leva para fora do tempo. Sento [para escrever] e o relógio não existe para mim por algumas horas. Provavelmente é o mais próximo da imortalidade que todos nós chegaremos. Estou com medo de soar pretensioso porque quem escreve ficção está dizendo: “Olhe para esta coisa que eu escrevi”. (David Foster Wallace)


Seus livros são longos e repletos de notas de rodapé reflexivas e muitas vezes constrangidas, a ponto de serem hilárias, mas sempre demonstrando uma especial maestria gramatical e linguística, na opinião de Bruce Weber (habilidade na pontuação do texto, inclusive). Wallace gostava tanto de experimentar quanto de se exibir, lembram os críticos, mas um detalhe específico que alguns deles apontam é que o escritor era “um moralista temente a Deus”, com “uma honestidade feroz ao confrontar a existência da contradição”. Apesar do clichê descritivo, se Wallace realmente fazia jus a ele, não há como ignorar as implicações, nesse cenário, de sua decisão por acabar com a própria vida.

Nunca é possível determinar as razões para uma coisas dessas; todas as tentativas são inúteis, a meu ver. Apesar disso, não perdemos esse hábito porque temos dificuldade em aceitar que alguém possa não querer estar/ficar vivo. Quem aceita isso é exceção, como Emil Cioran que dizia considerar a possiblidade do suicídio todos os dias, e que isso o manteve vivo durante tantos anos — saber que poderia deixar de existir a qualquer momento, se assim desejasse, fez toda a diferença. Sem querer especular sobre as razões de Wallace para levar a cabo a tarefa, vale lembrar um comentário feito por ele em uma entrevista para a revista Salon, em 1996. Para o escritor, ser americano no século 20 implicava sentir uma espécie de tristeza no “nível do estômago”, não como uma “reação aos noticiários e aos eventos correntes”, mas algo que observava em si mesmo e na maioria de seus amigos como a manifestação de uma espécie de “estado de perdição”. Ou seja, uma sensação inegável de desconforto que se sente nas próprias entranhas, uma reação “animal” a algo que espreita o homem há pelo menos um par de séculos. Wallace só se enganou ao pensar que esse era um problema apenas de norte-americanos.

Qualquer pessoa sabe que é na “boca do estômago” que sentimos um terrível aperto e mal-estar quando estamos angustiados. Nesse sentido, sua descrição é suscinta, mas precisa. Levando em conta as implicações filosóficas de uma alusão desse tipo, é difícil não lembrar aqui de Søren Kierkegaard falando da angústia, ou da “doença mortal” (sickness unto death), que afeta todos os homens. Era dessa “doença” que perturba intensamente — e, em alguns casos, mata — o homem contemporâneo que falava Wallace. O desespero ou esse não-sei-o-quê que paralisa e derruba tantas pessoas nem sempre pode ser tratado “com sucesso” através de medicamentos. No caso de Wallace, isso não foi possível. Segundo conta seu pai, após sofrer muito com os efeitos colaterais dos remédios que tomava, decidou abandoná-los em 2007. Segurou as pontas o quanto foi possível, mas o problema voltou com mais força. Tentou outros tratamentos, incluindo terapia electroconvulsiva. No entanto, sua profunda depressão resistiu a tudo e, por fim, a vontade de deixar de existir venceu qualquer temor.

Bem, já escrevi bastante sobre ele e o texto a seguir não é pequeno, mas com a sua trajetória de vida em mente, acredito que vale a pena dar uma olhada no “recado” que Wallace deu aos jovens recém-formados. E encerro pensando, cá com meus botões, se esses jovens se lembraram ao menos uma vez dessas palavras depois que o escritor morreu…



A liberdade de ver os outros

(por David Foster Wallace)


Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz: 

– Bom dia, meninos. Como está a água?

Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:

– Água? Que diabo é isso?

Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma, a frase soa como uma platitude, mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.

Boa parte das certezas que carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão, vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.

Querem ver? Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude — trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.

Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica — pelo menos no meu caso — é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.

Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma idéia bem mais profunda e séria. “Aprender a pensar” significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.

Lembrem o velho clichê: “A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível.” Como tantos clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça.Só que, no fundo, a maioria desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão — a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.

Isso também parece outra hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga idéia do significado real do que seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e frustração mesquinha.

Vou dar um exemplo prosaico imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia, está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma lástima.

Quando você finalmente chega lá, o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura, e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E, claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante, mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira de um ataque de nervos.

De qualquer modo, você acaba chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão seja autenticado pela máquina, e depois ouve um “boa noite, volte sempre” numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o trânsito está lento, pesado etc. e tal.

É num momento corriqueiro e desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim, a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.

Também posso passar o tempo no congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos, que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20 metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro, e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e tal.

Se opto conscientemente por seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim — só que pensar dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela deriva da minha configuração padrão.

Mas existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu. [Sobre o tédio, vejam o discurso em inglês do poeta russo Joseph Brodsky]

Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.

Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.

Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem. 

Na trincheira do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar — seja Jesus Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos — é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro, e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida, nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio — e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.

No fundo, sabemos de tudo isso, que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.

O insidioso dessas formas de veneração não está em serem pecaminosas — e sim em serem inconscientes. São o tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma escolha.

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros — no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.

Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência — consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor — daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”

É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.


Diz a lenda que, um belo dia, o cineasta inglês John Boorman e um sujeito chamado Donahue perguntaram para um grupo de diretores o que eles fariam caso pudessem filmar com “liberdade absoluta”, ou seja, com um orçamento ilimitado e absolutamente nenhuma obrigação de distribuir o filme.

Segundo a pessoa que contou esta história, a resposta do diretor polonês Krzysztof Kieslowski teria sido a seguinte:


Não acredito em liberdade absoluta. Na prática, isso é impossível, filosoficamente inaceitável. Nós nos posicionamos de forma a conquistar a liberdade e toda hora percebemos que não podemos alcançá-la. E, olhando por esse lado, a meta não é tão importante quanto os meios de conquistá-la; é impossível alcançar essa meta. Então, é óbvio que eu esteja disposto a fazer concessões. E não apenas porque isso é útil. Em primeiro lugar, porque não sei as respostas, e ao fazer filmes, eu faço perguntas. Perguntas e dúvidas, falta de auto-confiança, curiosidade e o maravilhamento por tudo acontecer de uma maneira natural — tudo isso me coloca em uma posição de ouvinte e observador. Mudo meu roteiro constantemente — as cenas, os diálogos ou as situações — porque posso ver que as pessoas à minha volta tem ideias melhores, soluções mais inteligentes. Não importa que estas sejam ideias de outras pessoas. A partir do momento que as aceitei e escolhi, elas se tornaram minhas.

Como um diretor de cinema, sou realista. Uso o mundo dos acontecimentos e o mundo dos pensamentos, e trato-os igualmente. Também sou realista em minha maneira de encarar o trabalho. Respeito o produtor, o dinheiro e, acima de tudo, meu espectador. Não porque tenha que fazer isso; faço assim porque quero. Em minha opinião, a produção de um filme — não importa quão dispendiosa — tem a sua “moralidade”. E tento obedecer a essa moralidade, porque quero obedecer. Uma xícara de café pode custar 1 dólar e 50 centavos, pode custar 3 ou 5 dólares, mas quando ela custa 120 dólares, beber esse café é imoral. É assim na produção de filmes.

O filme que quero fazer é o filme que eu posso fazer. Não há outros; não penso em outros filmes. Não tenho um milhão de espectadores esperando na entrada do cinema, mas necessito sentir que alguém precisa de mim para alguma coisa. E mesmo que eu faça filmes para mim mesmo, como todos os meus colegas, procuro todo o tempo por alguém que me diga, como uma garota de quinze anos me disse, na França: “Eu vi o seu A Dupla Vida de Veronique”. Então quero ver isso [acontecer] mais vezes. Pela primeira vez em minha vida [naquele momento], senti que existe algo como a “alma”. Então, se eu não estivesse interessado na opinião dessa garota, não haveria motivo nem para tirar a câmera da caixa.


(Infelizmente, não há qualquer referência para a fonte desta citação)

Posted by: Jussara

“Entangled” by Eda Akaltun (modified)


Essa é a razão pela qual a maioria de nós nem sequer se ressente da falta de liberdade. A pequena minoria, que sofre com a consciência do absurdo do jogo social, inventou um substituto para a fidelidade, chamado “compromisso”, que pode proporcionar uma sensação de liberdade. Essa minoria reconhece que a liberdade é o gesto de assumir responsabilidades, e que essa é a única estratégia que confere sentido ao jogo social. Assim como a fidelidade, o compromisso assume responsabilidades; sacrifica a disponibilidade e a mobilidade social em favor de uma relação específica. Mas há uma profunda diferença entre a fidelidade e o compromisso. [Este último] é baseado na decisão deliberada, [enquanto] a fidelidade [baseia-se] na espontaneidade. Ninguém decide ser fiel: a fidelidade é mantida. Em termos arcaicos, convenientes ao assunto: o compromisso é a fidelidade sem amor. Assim, a substituição da fidelidade pelo compromisso [ou engajamento] é um sintoma não apenas de nossa incapacidade para a liberdade existencial, mas acima de tudo, de nossa incapacidade para o amor.


Vilém Flusser ( Archives, 1983)  |  tradução: Jussara Almeida


Posted by: CAROL




O engraçado em todos estes sistemas utópicos de governo é que estão sempre a prometer libertar o homem – mas primeiro tentam fazê-lo funcionar como um relógio de corda para oito dias. Pedem ao indivíduo que se torne escravo a fim de conquistar a liberdade para a espécie humana. É uma lógica singular. Não digo que o presente sistema seja melhor. Na realidade, seria difícil imaginar algo pior do que temos agora. Mas sei que não o melhoraremos desistindo dos poucos direitos que temos já. Não me parece que precisemos de mais direitos: do que precisamos é de ideias maiores.

Jesus, apetece-me vomitar quando vejo o que advogados e juízes tentam preservar! A lei não tem qualquer relação com as necessidades humanas; é um negócio dirigido por um sindicato de parasitas. Abram um livro de Direito e leiam uma passagem (em qualquer lado) em voz alta. Parecerá loucura a quem estiver no seu perfeito juízo. É loucura, com a breca, eu sei! Mas, meu Deus, se começo a pôr em dúvida a lei tenho de pôr em dúvida outras coisas, também.

Ficaria maluco se encarasse as coisas com olhos lúcidos. É impossível, se não queremos desafinar. Temos de semicerrar os olhos à medida que avançamos, temos de deixar os outros supor que sabemos o que estamos a fazer. Mas ninguém sabe o que está a fazer! Não nos levantamos de manhã e pensamos o que vamos fazer. Não, senhor! Levantamo-nos atordoados, e arrastamo-nos por um túnel escuro, com uma «ressaca». Entramos no jogo. Sabemos que é uma imunda falsificação, uma batota pegada, mas não temos outro remédio senão sujeitar-nos; não há por onde escolher. Nascemos numa certa organização para a qual estamos condicionados: podemos pôr-lhe uns remendozitos aqui e ali, como a um barco com um rombo, mas não podemos refazer tudo do princípio: não há tempo para isso, temos de chegar ao porto – ou supomos que temos.

Claro que nunca lá chegaremos. O barco afundar-se-á primeiro, acreditem…”


Henry Miller  |  “Sexus” (tradução portuguesa)

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