Posted by: Jussara


Atravesso as ruas de uma cidade alheia esgueirando-me por entre a multidão. Passam por mim pessoas de todas as raças, de todas as crenças e de todos os sexos (durante muito tempo julguei que só houvesse dois). Homens de negro, óculos escuros, segurando pastas. Monges budistas, rindo muito, alegres como laranjas. Mulheres diáfanas. Gordas matronas com carrinhos de compras. Adolescentes magras, em patins, breves aves esgueirando-se entre a multidão. Meninos em fila indiana, com fardas escolares, o de trás segurando a mão do que vai na frente, na frente de todos uma professora, atrás de todos outra professora. Árabes de djelaba e solidéu. Carecas passeando pela trela cães assassinos. Polícias. Ladrões. Intelectuais absortos. Operários em fato macaco. Ninguém me vê. Nem sequer os japoneses, em grupos, com máquinas de filmar, e olhos estreitos atentos a tudo. Detenho-me em frente às pessoas, falo com elas, sacudo-as, mas não dão por mim. Não falam comigo. Há três dias que sonho com isto. Na minha outra vida, quando tinha ainda forma humana, acontecia-me o mesmo com certa frequência. Lembro-me de acordar depois com a boca amarga e o coração cheio de angústia. Acho que nessa época era uma premonição. Agora é talvez uma confirmação. Seja como for já não me aflige.



José Eduardo Agualusa  

(O primeiro sonho de uma lagartixa, ou osga, em O Vendedor de Passados, Gryphus, p. 31)


 

Eu, pecador, absoluto em meu pecado, todo poderoso construtor dos meus desvarios, confesso-me a mim. Persigo-me, persigo-me, prossigo nesta impossível, impassível jornada, trama indecifrável. Eu, pecador, crivado pelas setas e espinhos da dúvida, indivíduo no mundo, persigo meu sonho. E meu sonho intromete-se em minha vigília, soltando no ar os seres que povoam minha mente.

William Blake


Painting by William Blake

Posted by: Jussara

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Ando com preguiça de interpretar o mundo, de entender as pessoas, de procurar os setes erros. Gostaria de ter todas as respostas na última página, de ter um manual de atitudes sensatas, de ter pensamentos voltados para Meca. Queria que houvesse um serviço de telessoluções entregues em domicílio em menos de meia hora.
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Deus, ando abençoando a alienação.
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(Martha Medeiros em “Divã”)

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Cena de “Vergonha” (Skammen, 1968) de Ingmar Bergman

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Gostei desse texto abaixo e, como estou com uma preguiça enorme de colocar em palavras o que anda “passando pela minha cabeça”, ele me serve bem. Espero que a autora não se incomode…


Uma tragada de obviedades. Seguro-as dentro de mim ao máximo tempo, depois solto uma angústia cinzenta que demora a se dissipar. Eu estou cheia. Nunca tenho fome, nunca tenho sede, nunca tenho vontades inéditas. Mas não passo fome de coisas, ao contrário, estou sempre cheia, como disse. Sempre tentando preencher algum vazio que me brota aqui ou ali. Dois, seis, setecentos goles, setecentos golpes. Quatro mil tropeços. São essas lacunas dentro. Cair é fácil. Cair num letárgico sofrimento. Eu já disse, é como se um impedimento se anunciasse bem no meio da vontade. E tudo é cinza de um suposto querer novamente.

Uma flor vermelha. Um beijo doce. Uma taça de vinho. Um pôr-do-sol. A cada tragada. Nos sonhos, elas vêm aos montes. Cobras azuis. Obviedades. Virtualmente, carrego um coral florido, um merengue beijado, um tinto de copas, um horizonte acabando, findando a luz. Há uma luz teatral sobrepesando um círculo negro e, bem no centro, um cravo inexplicavelmente vermelho morre comigo.

(via “A Inércia“)


Ontem sonhei com uma pessoa que não conheço muito bem, mas que até bem pouco tempo me parecia muito interessante e atraente em alguns aspectos menos óbvios. Foi um sonho de “proximidade”, acho que posso descrevê-lo assim. Estranho, pois nunca tinha sonhado com nada parecido antes e não costumo ter sonhos “doces”; mas foi o caso deste. Até acordei bastante incomodada, já que o sonho vem em momento completamente inapropriado, como que fora de lugar, em atraso… Tão íntimo, tão pessoal e suave, de uma forma que não seria possível na vida “real”. Para um momento desses acontecer é necessário duas pessoas dispostas a se darem uma a outra, nem que por apenas algumas horas. “Armaduras” e “armas” tem que ficar do lado de fora. Difícil demais, não? Principalmente quando o orgulho é matéria do cotidiano e o esnobismo já virou hábito que nem sequer se percebe mais.

Tenho de confessar que foi bem agradável, mas fiquei com uma forte impressão de que, se o sonho se realizasse, o acontecimento real passaria longe da suavidade e da intimidade que a imagem onírica criou. Provavelmente, eu até estranharia; não estou mais acostumada à gentileza, à suavidade e à doçura de gestos e carícias. Ultimamente, as pessoas só conseguem dar bofetadas (físicas ou psicológicas) nos outros ou espalhar desprezo; ou deboche, que parece deixá-las extremamente felizes consigo mesmas. De qualquer forma, o sonho não podia ser MAIS fora de hora…

O timing do meu mundo onírico é péssimo! rsrsrs… E não me venham com teorias psicanalíticas sobre o inconsciente, porque hoje não estou interessada. A sensação forte e pesada das “entranhas” fala muito mais alto do que qualquer inconsciente.

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