Digo que fomos os que melhor encaramos nossa época e nossas terras inquisitivamente, como um médico a diagnosticar uma doença profunda. Nunca houve, todavia, mais vazio (falsidade?) no coração do que no presente — e aqui nos Estados Unidos. A crença genuína parece ter nos abandonado. Não cremos honestamente nos princípios básicos dos Estados (por todo esse brilho frenético e esses gritos melodramáticos), nem mesmo na própria humanidade. Que olho penetrante não vê, em todos os lugares, através da máscara?

O espetáculo é pavoroso. Vivemos em uma atmosfera de hipocrisia por toda parte. Os homens não acreditam nas mulheres, nem as mulheres nos homens. Uma arrogância desdenhosa dita as regras na literatura. O objetivo de todos os literatos é encontrar algo para ridicularizar. Uma variedade de igrejas, seitas, etc — os fantasmas mais sombrios que conheço — usurpam o nome da religião.

A conversação é uma massa de zombaria. Do engano no espírito, o pai de todas as falsas ações, a prole já é incalculável. Uma pessoa perspicaz e sincera no Departamento da Receita em Washington, que é levada, por conta de seu trabalho, a visitar regularmente muitas cidades ao norte, sul e oeste para investigar fraudes, tem falado muito comigo sobre suas descobertas. A depravação das classes empresariais de nosso país não é menor do que se supunha, mas infinitamente maior. Os serviços oficiais americanos — nacionais, estaduais e municipais — em todas as suas filiais e departamentos, com exceção do Judiciário, estão saturados em corrupção, suborno, falsidade, má administração; e o Judiciário [já] está contaminado. As grandes cidades fedem tanto com o roubo e a patifaria respeitável, quanto com a não-respeitável.

Na vida moderna, frivolidade, amores tépidos, infidelidade débil, objetivos mediocres, ou completa falta de objetivos, apenas para matar o tempo. Nos negócios (esses do mundo moderno que a tudo devoram), o único objetivo é o ganho monetário, por qualquer meio [disponível]. Na fábula, a serpente do mago comeu todas as outras serpentes; e o fazer dinheiro é a nossa serpente do mago, permanecendo hoje em dia como o único mestre em toda esfera de ação.


Walt Whitman  |  Democratic Vistas (1871)

Tradução: Jussara Almeida

Ilustração de Michael Shapcott Ilustração de Michael Shapcott


Era uma vez uma menina cujo coração batia mais rápido que o das outras pessoas. Isso incomodava toda a gente. Por causa do barulho…

O coração batia tão alto!

Ela tentava explicar: «É um coração de pássaro. Eu estou no corpo errado! Daí o coração bater tão rápido. Eu sou um pássaro…»

Pouco a pouco as pessoas foram-se habituando ao barulho do coração. Acabaram mesmo por esquecê-la. Ninguém se apercebeu do que se passava.

E isso era bom para ela. Também ela se habituava. Começou mesmo a gostar do seu corpo. E sentia-se cada vez mais leve.

Ninguém reparou como sorria, de olhos postos no céu.

E depois, um dia…

As pessoas já não sabiam se era alguém que morria, ou alguém que nascia.

Mas uma coisa era certa, ninguém se importaria de partir assim.


(Regina Pessoa em “História trágica com final feliz”)


Ilustração de Michael Shapcott Ilustração de Gildo Medina


I am a bird girl now
I’ve got my heart
Here in my hands now
I’ve been searching
For my wings some time
I’m gonna be born
Into soon the sky
‘Cause I’m a bird girl
And the bird girls go to heaven
I’m a bird girl
And the bird girls can fly
Bird girls can fly


(Antony and The Johnsons, “Bird Gerhl”)






Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me, então, o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos sempre.

(Stig Dagerman)





Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse uma esperança. Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.

(Juan Rulfo)





Tenho um espinho cravado no coração, um espinho que não pára de me causar dor, enquanto me entrego ao trabalho diário, e que me parece nem sequer me dar tréguas quando durmo. Mal desperto, de manhã, vejo que o céu perdeu o fulgor. Que se passa? Que aconteceu?

Meu espírito tornou-se tão sensitivo que até a minha vida passada, que se me apresentara sob o disfarce da felicidade, parece arrancar-me o coração, com a sua falsidade. A vergonha e a mágoa que se aproximam cada vez mais vão perdendo o ar secreto, velado, e perdem-no principalmente porque tentam ocultar o rosto.

O meu coração é todo olhos. Tenho de ver as coisas que não deveriam ser vistas, as coisas que não quero ver.

(Rabindranath Tagore)


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Para ouvir todas as músicas de Ólafur Arnalds em Living Room Songs (2011): AQUI.

Para assistir o programa completo gravado no apartamento de Ólafur: AQUI.

Posted by: Jussara

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Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
A minha face?

Cecília Meireles  (via relicariodemim)
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Posted by: Jussara (00h30)



Como ferve o coração!

Parece que domina a vontade de verter

todo o nosso coração

e todo o nosso corpo

no coração e corpo do outro…

(Fiodor Dostoievski)