Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo


Mia Couto  |  “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”



A solidão é uma mulher espancada que não tem mais força e nem vontade de amar. A solidão é uma criança faminta, sonhando com um pedaço de pão dormido. A solidão é o mendigo que não fechou os olhos há dias e noites e, quem sabe, desde que foi arrancado da barriga da mãe.

Como a loucura, a solidão é o medo.

Um homem só é um homem com medo. Um homem vivendo no medo é um homem só. Quando a solidão entra em mim, ela se torna eu. A solidão surge de improviso, quando apenas o corpo me pertence, e também quando apenas eu lhe pertenço. A solidão transforma a consciência em prisão, um calabouço de onde tenho medo de sair.

Medo de nada compreender, medo de tudo compreender. Medo de amar e de não mais amar. Medo de tudo esquecer e medo de nada esquecer […]. Medo de passar fome, medo de não ter mais sede de nada. Medo de morrer e de viver. Medo de ter medo. Medo de estar sozinho quando ninguém mais está ali. Medo de estar sozinho quando o ser amado está ali.

Há um medo que não é a morte, ainda, mas que não é mais a vida.


Elie Wiesel | “Uma Vontade Louca de Dançar

(Bertrand Brasil, 2006, pp. 202-203)



Na verdade, dá-se o seguinte: a afirmação de que a comunicação humana seria um artifício contra a solidão para a morte e a afirmação de que ela seria um processo que corre contra a tendência da natureza à entropia dizem o mesmo; a tendência cega da natureza para situações cada vez mais prováveis, para a aglomeração, para as cinzas (para a “morte morna”), não é senão o aspecto objetivo da experiência subjetiva de nossa estúpida solidão e de nossa condenação à morte.


Vilém Flusser  |  “O Mundo Codificado” (Cosac Naify, 2007, p.94)



Posted by: Jussara



Do desassossego e da solidão…

14.

Saber que será má a obra que se não fará nunca. Pior, porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao menos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesquinha no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e que reconheço mau, pode também dar uns momentos de distração de pior a um ou outro espírito magoado ou triste. Tanto me basta, ou não me basta, mas serve de alguma maneira, e assim é toda a vida.

Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a pena, já, de amanhã ter pena de ter tido pena hoje — grandes emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes emaranhamentos…

15. 

Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu. Reclamei, espaço a pequeno espaço, o pântano em que me quedara nulo. Pari meu ser definitivo, mas tirei-me a ferros de mim mesmo.

17.

São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. Surjo do que ontem internamente fui, procuro explicar a mim próprio como chequei aqui.

22.

Escrevo com uma estranha mágoa, servo de uma sufocação intelectual, que me vem da perfeição da tarde. Este céu de azul precioso, desmaiando para tons de cor-de-rosa pálido sob uma brisa igual e branda, dá-me à consciência de mim uma vontade de eu girar. Estou escrevendo, afinal, por fuga e refúgio. Evito as ideias. Esqueço as expressões exatas, e elas abrilham-se-me no ato físico de escrever, como se a mesma pena as produzisse.

Do que pensei, do que senti, sobrevive, obscura, uma vontade inútil de chorar.

63.

Toda a vida humana é um movimento na penumbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos melhores de nós vive a vaidade de qualquer coisa, e há um erro cujo ângulo não sabemos. Somos qualquer coisa que se passa no intervalo de um espetáculo; por vezes, por certas portas, entrevemos o que talvez não seja senão cenário. Todo o mundo é confuso, como vozes na noite.

[…] Sou como alguém que procura ao acaso, não sabendo onde foi oculto o objeto que lhe não disseram o que é. Jogamos às escondidas com ninguém. Há algures um subterfúgio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida.

Releio, sim, estas páginas que representam horas pobres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças desviadas para a paisagem, mágoas como quartos onde não se entra, certaz vozes, um grande cansaço, o evangelho por escrever.

Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas…

Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está aí é outro. Já não compreendo nada…

64.

Choro sobre as minhas páginas imperfeitas, mas os vindouros, se as lerem, sentirão mais com o meu choro do que sentiriam com a perfeição, se eu a conseguisse, que me privaria de chorar e portanto até de escrever. O perfeito não se manifesta. O santo chora, e é humano. Deus está calado. Por isso podemos amar o santo, mas não podemos amar a Deus.

68.

O cansaço de todas as ilusões e de tudo que há nas ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecansaço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.

A consciência da inconsciência da vida é o maior martírio imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes — brilhos do espírito, correntes do entendimento, mistérios e filosofias — que têm o mesmo automatismo que os reflexos corpóreos, que a gestão que o figado e os rins fazem de suas secreções.

……

DIÁRIO LÚCIDO

A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e de que só o primeiro ato se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.

O prêmio natural do meu afastamento da vida foi a incapacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em torno a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que repelo os outros. Ainda não consegui não sofrer com a minha solidão. Tão difícil é obter aquela distinção de espírito que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.

Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como o não teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a respeito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre sofrer desilusões com eles — tão complexo e subtil é o meu destino de sofrer.

Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre inesperado para mim.

Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem alguém, nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se factos sobre factos — aqueles inesperados factos que eu esperava — a não viessem confirmar sempre.

Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável, não tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela simpatia que a atrai quando ela não seja patentemente merecida; e para o que em mim merece piedade, não a pode haver, porque nunca há piedade para os aleijados de espírito. De modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio, em que não me inclino para a simpatia de ninguém.

Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjeção.

É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo reconhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, aborto sobrevivente, louco ainda fora das fronteiras da internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espírito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natureza lhe impôs. Querer que não sofra com isso, é querer de mais, porque não cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal, não é possível não sofrer com ele.

Conceber-me de fora foi a minha desgraça — a desgraça para a minha felicidade. Vi-me como os outros me veem, e passei a desprezar-me — não tanto porque reconhecesse em mim uma tal ordem de qualidades que eu por elas merecesse desprezo, mas porque passei a ver-me como os outros me veem e a sentir um desprezo qualquer que eles por mim sentem. Sofri a humilhação de me conhecer. Como este calvário não tem nobreza, nem ressurreição dias depois, eu não pude senão sofrer com o ignóbil disto.

Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a não ser que lhe faltasse de todo o senso estético — e então eu o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigo não podia passar de um capricho da indiferença alheia.

Ver claro em nós e em como os outros nos veem! Ver esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no Calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade. Senhor, senhor, por que me abandonaste?

……

Fernando Pessoa  |  “Livro do Desassossego” 

(Cia. das Letras, 3a ed. revista e ampliada, 2011)

…….


A vida podia simplesmente “deixar” alguns, como quem sai de uma casa velha e solitária para lá jamais voltar a colocar os pés. Seria um alívio, melhor, “o” alívio definitivo.

Talvez a única solução certa para o nada da vida seja o nada da morte.

……

[por Jussara Almeida]

 

Não era esse o planejado. Como sempre, a ideia era viajar para perto da família, ficar na casa da mãe, curtir o aconchego, a comida caseira, o sossego de poder escrever sem se preocupar com nada. Mas algo parecia se opor ao encontro, como se o corpo, e talvez a alma, contrariassem subitamente a vontade mais óbvia, enfraquecendo-a sem esforço. O hábito anual de comemorar o Natal com a família pareceu perder a força e, num piscar de olhos, o plano foi por água abaixo. Tudo que ocupava o espaço interior era o desejo do silêncio… e de solidão. Um irresistível não-querer estar acompanhada, não-querer falar e nem sorrir — ou chorar — junto daqueles que se ama. Não por eles, mas porque o estar só tornou-se, de repente, a única coisa “necessária”.

Primeiro Natal sem companhia, sem ceia, sem felicitações pelo aniversário da mãe, sem conversas ao telefone com parentes distantes e amigos de infância, sem presentes! Que estranheza no próprio sentir, como se um outro tomasse conta de si sem fazer nenhum alarde. E aquilo que a tantos amedronta passa a ser um refúgio pelo qual se anseia. Algo que para muitos, a maioria talvez, é impensável: um Natal na mais completa solidão!

Como assim passar o Natal sozinha?”, disse a querida amiga ao telefone. “De jeito nenhum! Natal é para se passar junto com alguém que se ama, com a família!”, insistiu.

Mas eu não quero. Quero ficar só! Não há nenhum drama nisso. Não estou deprimida, minha vida não desabou. Preciso apenas ficar sozinha; não há razão específica, só um forte desejo e nada mais”, retrucou, sem muito sucesso.

O argumento não convenceu, e não foi possível desligar o telefone sem antes concordar em passar a ceia junto à amiga e sua família. Não era nada disso que o desejo pedia, mas o convite comoveu, de certa forma. Afinal, disse a voz interna e tão familiar, ainda há amigos capazes de se preocupar com a tua solidão. De repente, quando mais se deseja estar só, descobre-se que não se está tanto assim quanto se imaginava… Foi inevitável aceitar o convite e, não desejando passar o Natal nem com própria família, acabou passando com a família de outra pessoa. Quão bizarra consegue ser a vida quando menos se espera!

Será que todas as coisas são assim? Enquanto se quer muito algo, nada se consegue. E, finalmente, quando se aceita a condição de impossibilidade e, quase por inércia se pende para a direção oposta, o que antes se desejava acaba caindo no colo de surpresa? Mais de três décadas nas costas afirmam que sim, mas não é assim com todos. Há tanta gente por aí que nasce, cresce e vive quase sem esforço — tudo na mão, tudo pronto e fácil. E isso não é um conto da carochinha. Pessoas assim realmente existem! Mas há também tantos outros que batalham incessantemente e conseguem pouco mais do que migalhas da vida. Não há justiça na existência, não importa o que digam os livros de auto-ajuda e algumas religiões da “prosperidade”. Uns tem sorte e muitos outros azar. E pronto!

A ceia foi simpática, a família alheia muito receptiva e acolhedora. A amiga impecável e a comida excelente. Mineiros e goianos não só cozinham bem, mas gostam de fartura e de comer, lógico. Tudo delicioso, nada do que reclamar. Foi melhor do que esperava a princípio. Mas e o tal desejo insólito? Bem, continuava lá e não a deixaria esquecer-se dele assim tão facilmente. Afinal, ainda havia o dia seguinte para impor a solidão. E assim foi. Um telefone para a mãe, um sentimento de culpa incomodando um pouco e assunto resolvido: viagem só na segunda-feira mesmo.

Depois de tantos anos de vida, a experiência era uma novidade, e sem causar angústia! Um pouco desconfortável no início do dia, mas nada que um par de horas lendo em sossego não resolvesse. Facilmente aquela “mágica” que o mundo ocidental — e a propaganda — proclamam, sem pudor, se desfez diante de seus olhos. Mas a desconfiança era antiga, afinal. Não há nada de mais no Natal, a não ser que se considere a data por sua origem, ou seja, por aquilo para o qual ela foi criada a princípio.

Pensar no nascimento de Cristo faz sentido. Lembrar desse homem-deus, que falou de amor e, em troca, acabou chicoteado, humilhado e morto de forma cruel, faz sentido. Mas todo o resto é puro nonsense; só mais uma ferramenta, dentre outras incontáveis, para entreter, iludir e esconder a dura condição humana. Pó de pirlimpimpim, como a mágica em forma de purpurina que tanto agradava às crianças sonhadas por Lobato, agora um outsider para o currículo escolar. Quem diria que chegariamos a um absurdo como esse. Uma das melhores lembranças da infância transformada em “má influência” para as crianças do século XXI. E depois dizem por aí que o país melhorou!! Parece piada. Mas isso é outra história, afinal…

E a solidão natalina? Caiu como uma luva e nem surpresa causou por conta disso. Nada para se assombrar, afinal a solidão é condição natural, mesmo que essa constatação aterrorize quase tanto quanto a morte. Talvez por isso os homens tenham se adaptado tão bem em grupo, mesmo se odiando continuamente. Precisam uns dos outros para se convencer de que ambas — a solidão e a morte — não são inevitáveis. Pelo menos, não de forma ideal. Ainda não se escapa da morte, mas pode-se tentar atrasar o derradeiro momento; e a solidão, se não puder ser eliminada, pelo menos é contornável. Dá-se um jeito, não?

No fundo, para tristeza geral e global, não há jeito para destruir completamente o bichinho que corrói o homem por dentro. Seu medo é muito mais real do que seus sonhos de vencer o invencível. Finitude e solidão são realidades, quer o homem queira, quer não. Mas é possível conviver com sua inevitabilidade. É possível sentir necessidade de silêncio, de afastamento do mundo, e ainda assim ficar bem. Sem anti-depressivos, sem terapia, sem desespero.

É possível SIM passar o Natal na mais completa solidão e, apesar disso, sentir paz e sorrir.

E com direito a presente, ou melhor, com gosto de graça!