Posted by: Jussara
Não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa.
Chico Buarque | “Budapeste” (Leya, 2008, p. 46)
Uma fusão da arte do retrato com a cartografia é uma definição básica dada ao engenhoso trabalho do ilustrador Ed Fairburn. Segundo as descrições do próprio artista, ele procura formas de misturar a topografia, as grades de ruas e estradas, e até mesmo as estrelas dos mapas celestes, com as feições humanas, de modo a produzir esses impressionantes retratos que aparecem a seguir. Além da criatividade de Fairburn ao escolher o material que usa como “tela” — mapas de todos os tipos e procedências –, não se pode ignorar sua grande atenção ao detalhe, com um olhar apurado que acompanha seu cuidadoso trabalho manual.
Deparei-me com os retratos desse artista dias atrás, em um desses blogs que postam apenas imagens. Ampliando um pouco as ilustrações de Fairburn em meu computador, fiquei surpresa com a forma como ele permite que o “tipo” do mapa oriente o estilo de seu traço, utilizando partes da trama cartográfica como componentes dos rostos que desenha. Como diz uma tal de Kimberly Li, cuja crítica o ilustrador incorporou ao site, “uma rua pode traçar a curva de um sorriso e as estradas podem criar uma fratura através de um rosto solene, produzindo uma representação assombrosamente bela de expressão humana“.
What is on the paper map is a representation of what was in the retinal representation of the man who made the map; and as you push the question back, what you find is an infinite regress, an infinite series of maps.
(via butdoesitfloat)
Os retratos de Fairburn fizeram-me pensar o quanto o deslocamento do olhar é importante, talvez essencial, na criação de uma obra que seja capaz de provocar aquele que a contempla. Para além de sua indiscutível habilidade de captar o que o rosto humano é capaz de expressar sem qualquer palavra, Fairburn instiga o observador a pensar, entre outras coisas, na relação complexa do ser humano com o seu entorno: nas formas como foi ocupando os espaços, tomando posse dos terrenos e modificando suas características, adaptando tudo que podia ao seu modo de viver, subjugando a terra e a natureza às suas necessidades. Em outras palavras, dando a esse espaço a sua “cara”, como se costuma dizer.
Claro que essa não é uma via de mão única. O homem também foi influenciado — limitado, constrangido, inspirado, acolhido — pelo entorno, principalmente antes de desenvolver toda a tecnologia que hoje pode, inclusive, destruí-lo. Não é necessário muito tempo pensando a respeito para concluir que a influência mútua não desapareceu. Se nosso humor e até nossa saúde podem ser afetados pelo local onde nos encontramos, nossa expressão facial não ficaria imune. É claro que estou sendo superficial aqui, mas minha intenção não é fazer nenhum tipo de análise da relação homem-entorno, apenas apontar para uma das primeiras coisas que passaram pela minha cabeça ao olhar para um desses retratos.
De certa forma, somos uma extensão daquilo que está representado em nossos mapas. Ou como diz o personagem de Chico Buarque, na primeira citação deste post, somos também o mapa de uma pessoa. Acho que diria mais: somos um emaranhado de mapas que se intercalam ou se sobrepõem, por vezes nos impedindo de (re)conhecer nossos próprios caminhos.
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Those cracks in your face, do they hurt?
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Jessica 6 in “Logan’s Run“
Quem discordaria que o rosto é o primeiro “mapa” pelo qual procuramos nos orientar em contato com outra pessoa? É nele que buscamos os sinais do que se passa no mundo desconhecido que só ao outro pertence. O rosto é ao mesmo tempo um espelho e um mapa, ainda que limitado e possivelmente enganador. Nesse sentido, os retratos de Fairburn são também lembretes de que a face humana não apenas revela, mas esconde uma infinidade de segredos que nem sempre somos capazes de desvendar.
Nos mapas celestiais, por exemplo, Fairburn inspira-se na divisão em círculos concêntricos, que partem do centro do mapa em direção à extremidade, para “construir” seus retratos igualmente a partir de círculos de vários tamanhos, desenhando-os em camadas para sugerir linha e sombra através da transparência e da tonalidade. Olhando mais de perto, os detalhes de cada rosto misturam-se com várias das estrelas que aparecem marcadas no mapa. É como se ele encontrasse uma nova constelação, mais abrangente e imperceptível ao olhar, que revela uma face celestial por detrás da conjunção de várias constelações conhecidas.
What if it were true that nature speaks in signs and that the secret to understanding its language consists in noticing similarities in shape or form?
Jeremy Narby
A seguir, exemplos de uma série de trabalhos figurativos que representam um estudo conjunto dos atributos físicos de um terreno e das características de um rosto humano. O que o ilustrador faz, como ele mesmo diz, é tentar “sincronizar os dois, encontrando similaridades entre os padrões“, antes de começar a desenhar o retrato e construir as tonalidades. “A ênfase é colocada na textura ‘fragmentada’ da pele, um processo que tem encorajado” seu trabalho a evoluir a partir do preenchimento do papel comum para uma “potencial ocupação de outras superfícies pré-fragmentadas ou pré-modeladas“.
Depois de apreciar o trabalho de Ed Farburn, posso afirmar que adoraria ter não apenas uma, mas várias de suas obras ocupando as paredes de meu apartamento. E sei que passaria um bom tempo contemplando-as sem nenhuma pressa.